02/08/2008

Diários do Desespero - O assassino e a sua redenção




8 de Dezembro, 1975


Putrefacção. É tudo o que encontro neste cubículo em que me vejo aprisionado. Putrefacção, núa, pestilenta, pegajosa, fétida putrefacção. A luz entra receosa e cinzenta, esculpida pelas barras frias, pedindo perdão por tocar as pedras e mostrar a sua sujidade. Putrefacção.
Neste corredor estão impregnados o desespero e a solidão, e o único cheiro que abunda das nossas roupas imundas e derradeiras, o único ar que respiramos, a única água que saboreamos nas secas línguas, é a negritude. E ao longe está ela, imponente, dura, austera e gélida. Aquela fácil de trespassar à ida, mas demasiado pesada para abrir para este lado. Aquela cujas mãos entrelaçam cordéis nos dedos grandes dos pés, de onde pende as letras de quem fomos, aquela que deixa este constante cheiro a mágoa e culpa a pairar pelo ar.
A minha habitação está bem longe de ser a última, mas outros já se mijam nas calças, desesperam, por saber que em pouco tempo o cheiro - o seu cheiro - a queimado e merda electrocutada preencherá os nossos tímpanos, como uma cinzenta nuvem antes da grande tempestade.
Sinto o desespero chegar como os passos firmes e constantes dos guardas que acompanham as ascas dos fantasmas dementais, como um guincho, sempre presente, moendo os ouvidos e as têmperas até que estes rebentem numa explosão de pús e merda. E sinto a dor de uma chama que me arde o peito e come-me a fala, num incêndio esfomeado e devastador. Já não sei quem sou nem de quem é este corpo.

02/16/53



Lá fora os pássaros calaram-se e as folhas há muito voaram para longe, deixando uma terra desprovida de sentido, onde apenas o grito dos pássaros negros como a noite, e as árvores despidas imperam e nos saúdam à janela. Há muito que a vida se esvaiu deste inferno gélido e, em breve, o frio que me dói nos ossos desaparecerá e dará lugar a um vazio. Sinto esse frio tornar-se mais duro a cada dia que passa, sugando quaisquer resquícios de paz que ainda me preenchiam, vendo os dias passar, só me resta esperar. Esperar até que me fritem, que me queimem, tal como eu os queimei, aos fantasmas que agora sempre me acompanham. A eles entrego o meu moribundo corpo. Chegou a hora.

02/23/53
Prisioneiro nº 095-7148359


(Autor da fotografia não identificado)

29/07/2008

Diários do Desespero - O escritor que parou de escrever

Dia 47
Rodo o calendário, mais um dia nesta vastidão de milénios pelos quais milhares de seres pisaram este pedaço de terra onde me encontro actualmente, mais um dia na monotonia de uma rotina que me trespassa como uma espada e me esventra toda a vontade de me fazer à estrada, de polegar ao ar, palmilhando o património. Mais um dia sem escrever.
Os meus dedos estremecem, na minha mente uma névoa disfarçada com a sua cor de pérola afasta a clareza de espírito e da concentração, a boca está seca, ressequida, as lágrimas caiem-me dos olhos para as mãos, as mesmas mãos que me acolhem o sal e param-me a tinta. Se ao menos fosse a mente que escrevesse e não estes flácidos dedos… Quero comê-los a todos! Arrancá-los à dentada e dá-los de comer à terra! Ingratos filhos da puta, dou-lhes o prazer do nylon, das trastes, das teclas, de sentir o vento e os grãos de café, e os cabrões sabotam-me as ideias! Mas não, nunca mais, as feridas vão ser minhas amigas, e os convencionalismos não existirão mais, e então eu poderei ser livre! Livrar-me-ei deste paradoxo que é escrever sobre não conseguir escrever, desta dor que é não ter dor que extravasssar, não ter nada de verdadeiro! Livrar-me-ei do ridículo! Então conseguirei mais uma injecção e viajar, viajar…
Quando é que é que esta seca vai acabar? Dêem-me água, por favor, as lágrimas já não me matam a sede. Quando é que esta fome vai acabar?


Maio, 17, 1943



Fotografia de Cyril Berthault Jacquier

26/07/2008

Vácuo

Não escrevo nada. A página permanece branca, somente os ligeiros e quase imperceptíveis sulcos preenchem o granulado papel. Está vazia. Estou vazia.

Vejo o ponteiro do relógio avançar a passos largos e cá dentro o bicho começa a despertar, corrói-me o interior e sobe-me pela garganta. A folha continua branca. Olho as outras folhas, compressas em pilhas sombreadas pelas esbletas letras, nada me ocorre, a pressão sobe, tenho que criar, sinto a vontade de criar, tenho de superar. Agora a mente funciona a todo o vapor, penso, penso, penso, não páro de pensar. Inocentemente questiono-me «O que se passa?» Mas são só questões, nada flui, nada brota.


Começa a paranóia, o desespero vai rastejando, matreiro, infiltrando-se, platando a semente da frustração. Pergunto-me, com um travo de culpa, porque não peguei na caneta quando as palavras me jorravam dos lábios e me transpiravam do corpo em pingos grossos. Porque menosprezei eu as palavras?


O meu corpo estremece, frenético, desesperado, um grito acutilante rompe-me os ouvidos, bloqueia-me os pensamentos, e nada sai, tudo permanece por escrever. A folha continua vazia, esgotaram-se as palavras

18/11/2007

Não passamos de fantasmas irracionais


Há dias em que é exaustivo viver, é cansativo pensar no pensamento, respirar ou sorrir. Esses são os mesmos dias em que desejamos, no meio de uma vastidão de caras comunicativas, deitarmo-nos por um pouco no escuro, escapar de nós próprios, apenas silenciar as palavras que não cessam de aparecer na mente, sermos um outro alguém por um momento e afastar o nosso eu. Esses são os dias em que deixamos a água do duche correr quente sobre a nossa pele, enquanto respiramos fundo e fechamos os olhos, imaginando o líquido amiótico a rodear-nos no ventre de nossa mãe, e deixamos a água correr como uma preparação para o novo nascimento: ela levava consigo, para os esgotos pestilentos, o antigo ser, e todas as impurezas. Quando a torneira se desligasse éramos folhas em branco à espera de serem escritas, amachucadas, esticadas no arrependimento, amadas pela tinta do apaixonado, perfumadas com a fragrância divinal da condessa, beijadas na emoção, rabiscadas em conjecturas longíquas, rasgadas na frustração. No fim, após vários banhos,era a frustração que pervalecia. A frustração acompanhada de uma vontade desesperante de gritar, abafada por um suspiro dado na escuridão das palavras, parado por uns olhos e ouvidos sempre alerta, sempre atentos. Em todo o lado havia olhos, ouvidos, narizes, bocas. A escuridão nunca nos abarcava, havia sempre alguma luz ofuscante, algum som que gritava mais alto, alto demais para ouvirmos o grito e alto demais para nos consolidarmos com o silêncio. Havia sempre um elemento encadeador, alguém à espreita, apontando todos os passos que dávamos.
São os mesmos dias em que nem toda a comida ou água nos saceia a fome e a sede, nem todo o vento nos saceia a vontade de voar, e que por mais que corramos ou tentemos dispersar, permanecemos sempre, sempre, ligados a nós. São os dias em que nos cansamos de nós e no pensamento rasgamos a roupa, permanecendo no frio nús, com a pele a gretar, só para sentir algo mais que um vazio e cansaço de algo que nem existe, de um movimento apático.


Fotografia de Nuno Ramos

29/10/2007

Às vezes gosto de imaginar que sou poeta

Psycho Killer
Rasga a carne orgásmicamente, o pequeno psicopata.
De lâmina pontiaguda e água na boca,
Atrai inocentes vitimas com sua forte omoplata,
E na luz vermelha vê o sangue esguichar.

Em lascívia ribombante solta os gritos selvagens
Presos em sua ânsia traqueal de matar.
Como maestro em composição define as margens
E inicia sua cortante catarse visceral.

Ah, a carne a ser perfurada, o som do sangue a gotejar.
Ah, os gritos dados no expoente do desesperante.
Ah, a humanidade em seu supremo enrodilhar. Ah matar, matar!
Matar em ímpeto insano, fulgor delirante.

Carniceiro, desditoso em lucidez, é sedento em se capitular,
Ao sensual render do aprazível ceifar.
De mãos firmes em sua enamorada lâmina, corre sequioso.
Faz carnificina em campos sombrios, pelas próximas vítimas ansioso.

À luz lunática das velas, iguaria prepara, horripilante repasto,
Com cheiro a queimado, prepara menu intestinal, hoje está bem vasto.
Por fim lambe os dedos em derradeiro canibalismo,
E de barriga cheia parte para novo deliciado tantrismo.

23/09/2007

Histórias da fachada gasta

Eles chegam aos pacotes, como animais enjaulados, encarcerados por si próprios em latas, todos seguindo em cardume, prontos para o ritual, como desenhos animados. Também eu embarco na massização que me despeja na suja calçada onde tantos outros marcham, pequenos soldados vendados, ignorando os vigiantes prédios que à sua volta se erguem mal-tratados, numa peculiar beleza que atrai o meu olhar. Mas eles não param, eles não param. O alvo está marcado e o dedo a milímetros do botão, robóticamente nos guiamos como satélites teleguiados. Ouço fragmentos de vidas gritarem pelos becos e estreitas ruas, vozes velhas presas na imperceptibilidade dos ouvidos moucos. Ninguém repara. Os olhos estão fixados, chegaram ao cerne da sua cegueira, de motores ronronantes.



Na sombra de um prédio um mendigo prepara cuidadosamente a sua cama de trapos contorcidos, irónicamente estendidos em frente à montra do consumismo dourado que enfeita os mais presunçosos pescoços. Os abutres emergem de seus ninhos e continuam na sua busca sedenta de carne fresca, demasiado ocupados e zonzos com o seu festim espumoso e fresco para reparar nas rugas da repousante cabeça, que contrasta com o tecido castanho da dura almofada. Alguns reparam mas é má carne. Fulminam-o com as suas órbitras perpetuantes e retomam o trilho, apanham de novo o cheiro dos musculos e tendões a serem rasgados no crepúsculo veranal, ouvem o esguicho do sangue quente caindo a kilómetros, os filhos-da-mãe.


As cordas viajam pelo esquecimento encerado, por ora peludo, que enfeita os esquecidos pendricalhos pendurados no gracejante crânio. Ele vai pela negra coluna viajada e suja, cansada e velha, em que raras são as vezes que vê o metal a cair na tigela para à noite ser engolido pelo dono apaixonado. Quando atrai relanceados olhares o mundo é dela, e ganha novo ânimo para traduzir a alma do homem que toca o morno violino a seu lado em palavras perceptíveis aos pobres estrangeiros da melodia. Coitados, queriam eles ser filhos das claves e irmãos dos contra-tempos, queriam eles serem os melhores amigos do Dó, os namorados da Mi, e os enamorados do Si que gosta de viajar entre as duas equipas. Queriam eles ter altifalantes nos dedos, queriam eles tocar a pele pela fala muda na boca mas gritante na derme, queriam eles falar como quem beija, tocar como quem penetra as barreiras do prazer. Mas a pequenita coluna só toca bem para alguns, e leva a todos. Pena que a inveja toque a todos e só (não)leve a alguns.

Para quê as palas? Para quê?


Fotografias por Cyril Berthault Jacquier

04/09/2007

A complementariedade tridimencional combusta num rodar dos melómanos, transpostos em acrílico, retratando o calor sob a agulha, prefuradora de derme, hiperventiladora sufocante, manto de entranhas corroídas pelo veneno de lábios ergonómicamente quentes, tocados pela impermebialidade de seus donos, paupérrimos em sanidade, relativamente relativistas em tudo o que há para relativizar.

28/07/2007

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket

O refúgio de tinta compressa contra a folha. Os dedos estão cansados, mas não sucumbem. O árduo nylon pela noite fora os puseram assim. A melodia que dançava à minha volta como libertação. A noite traz uma nova corrente de vontade, o criar está nas pontas das mãos, nos lápis, nas teclas, nas cordas, no botão da máquina, no botão da mente. A adrenalina corre pelas artérias como uma droga e as mãos movem-se ao ritmo que as ideias nascem - o ritmo frenético de uma bateria no clímax da canção - e tudo nasce em mim, o novo e a vontade, e a esperança. Mas os números do relógio não param, e quando a luz entra perguiçosamente pela janela, as ilusões desvaneçem-se, a consciência do meu eu retorna, e a pessoa de energia inesgotável pega na esperança e foge acobardada com a prespectiva de um novo dia, deixando-me estática, olhando a cama vazia, onde acabo por me afogar e fechar os olhos, contando que quando estes se voltarem a abrir e o sol for alto tudo será diferente.
Nada foi.
Nada para além duma presistente irritação, que teima em implicar com as palavras escritas na escuridão, demasiado pomposas e prepotentes para seu próprio bem. A vontade de destruí-las a todas - ao ser que foi sendo cuidadosamente construído ao longo destes anos - urge dentro de mim, cada vez mais. Uma necessidade de voltar à simples ingenuidade, livre de idealismos e ideias pré-concebidas, livre de dicionários careiros onde aprendo nada mais do que um transpôr de ideias confuso e galante, misterioso e estúpidamene convencido.
É toda uma vontade de ser alguém diferente e melhor, alguém com defeitos extraordinários, alguém com o mais comum dos sonhos: o reconhecimento. O reconhecimento da pessoa e não das palavras. Estas palavras viciantes que não consigo deixar.

20/07/2007

Macaquinhos do Arctico





Pronto, merecia um espaço aqui, tal foi a insanidade da coisa, muito bom mesmo.

Videos de Burninghearts

12/07/2007

Cyril berthault-jacquier



Vísceras suculentas enrodilhadas numa absolutividade de dúvida e estranheza por não reconhecer o meu ser carnal. A insanidade lança dúvidas sobre o que sou e o que digo, a motivação do pensamento e o porquê de mim. Esmurra-me a cabeça num grito de loucura que não consigo controlar, que ganha energia e explode. Já não sei nada. Quanto mais as vozes se erguem num cântico de exaltação ao existencialismo mais a capa de veias e musculos e ossos vai perdendo o controle. É a inveja a rasgar-me a pele, a incerteza a prepetuar as verdades outrora inquestionáveis. O pensamento surge e salta como bailarinos numa frenética dança, em que a compreensão e transposição não conseguem acompanhar o riso demente e olhos estrábicos. Sombras de esquizofrenia espreitam, aguardando pela abertura do pano, para por fim realizarem o derradeiro espetáculo, onde nada será o mesmo. Já não sei quem sou. O espelho tornou-se num precipicío de demência em que não me reconheço. As palavras não chegam para descrever o abismo

04/06/2007

Nas palavras me liberto da monotomia




É o escape que me leva, cortando o ar, para lugares inéditos e vidas inventadas. Inventa-me falas e sentimentos e máscaras e vida. E é a combinação dos momentos que a vida não traz com o som do dia a dia. E cada vez mais este mundo vai-me absorvendo. Ele e as suas personagens, que também sou eu. A realidade fica para trás e mudo-me com o vento, perdendo aos poucos a noção de quem sou (era?). Os borrões de tinta vão caindo na folha suaves, levando parte de mim com eles. Restando pouco nesta capa que chamam de corpo. O corpo já não me chega para guardar(-me). Transcende-me e passa para as folhas, o ar, a tinta, as paredes, as outras pessoas. Já não sei viver sem ser mais alguém, todas as noites, um bocadinho. No papel. Na cabeça. Na música. Já há diálogos dentro de mim que parecem querer gritar e rasgar a pele morna, quebrando as entranhas, dando murros nas paredes ensaguentadas, desesperados por sair. Todos querem um pedaço de mim. Todos eles querem Ser. Todos eles querem mostrar a (minha) insanidade contida neste corpo vazio. Lutam e gritam e choram e riem e usam e manipulam. E alguém me acorda do transe em que entro, o da imaginação, aquele em que eu sou o que quiser, aquele em que me refugio, aquele em que o idealismo ganha vida, o transe que vai tomando conta de mim, cada vez mais.


Fotografia de Cyril Berthault Jacquier

01/06/2007

O velho matinal, não distinguido agora do negrume poeirento

O Nu corre pela fenda húmida, rugosa e bolorenta, velha de rugas amareladas. Era a doce lágrima do que restara, do que o tempo tinha deixado ficar. Ar frio e luz poeirenta, nada mais. Chão retificado, campo de concentração de nojentas ratazanas, cheiro fétido. A morte avançava lentamente, o bolor consumia, cheirava até ao fim as réstias de sangue. Pés fugiam das tábuas como de pregos, só memórias pairavam. Velho pó, teias, pontas amareladas de sorrisos sufocados captados por lentes e pólvora. Saxofone calado. Concertina engatilhada, os dedos estavam mortos, teclas de telhados serviam a pobres formigas, protegendo-se da toxina que se ia espalhando pelas frechas, como particulas que se dissolviam no mar. Morfina doce era o assassino. Assassino? Não. O tempo o era. Quem o matou. A morfina só ajudou. Fez a dor desaparecer. Agora era a droga que ia matando os fantasmas e as formigas e os ratos de vidros estilhaçados. Era ela e o frio. A memória e o tempo.

20/05/2007

Trazes-me um mundo novo e um copo de água, se faz favor?

As folhas batiam com um pau na sua alma, como se de cadáver se tratasse, implorando por mais uma dose desse doce vicio que tinham. Queriam mais uma injecção de borrões, da afiada ponta cinzenta a empurrar o liquido preto na superfície rugosa e absorvente. Mas a alma recusava-se a abrir espaço para as palavras, ela achava que quem não tinha propósito não tinha motivo para conjurar hipérboles e metáforas numa dança angelical, e cada vez mais se fechava numa redoma sem vida, onde a inspiração murchava pela falta de ar. E as letras iam-se apagando, como se uma leve brisa fosse passando e levando um bocadinho delas de cada vez, até ficar só o papel, viciado e miserável, desistindo de esperar que ela voltasse a acordar do transe em que a inércia a tinha posto.