18/11/2007

Não passamos de fantasmas irracionais


Há dias em que é exaustivo viver, é cansativo pensar no pensamento, respirar ou sorrir. Esses são os mesmos dias em que desejamos, no meio de uma vastidão de caras comunicativas, deitarmo-nos por um pouco no escuro, escapar de nós próprios, apenas silenciar as palavras que não cessam de aparecer na mente, sermos um outro alguém por um momento e afastar o nosso eu. Esses são os dias em que deixamos a água do duche correr quente sobre a nossa pele, enquanto respiramos fundo e fechamos os olhos, imaginando o líquido amiótico a rodear-nos no ventre de nossa mãe, e deixamos a água correr como uma preparação para o novo nascimento: ela levava consigo, para os esgotos pestilentos, o antigo ser, e todas as impurezas. Quando a torneira se desligasse éramos folhas em branco à espera de serem escritas, amachucadas, esticadas no arrependimento, amadas pela tinta do apaixonado, perfumadas com a fragrância divinal da condessa, beijadas na emoção, rabiscadas em conjecturas longíquas, rasgadas na frustração. No fim, após vários banhos,era a frustração que pervalecia. A frustração acompanhada de uma vontade desesperante de gritar, abafada por um suspiro dado na escuridão das palavras, parado por uns olhos e ouvidos sempre alerta, sempre atentos. Em todo o lado havia olhos, ouvidos, narizes, bocas. A escuridão nunca nos abarcava, havia sempre alguma luz ofuscante, algum som que gritava mais alto, alto demais para ouvirmos o grito e alto demais para nos consolidarmos com o silêncio. Havia sempre um elemento encadeador, alguém à espreita, apontando todos os passos que dávamos.
São os mesmos dias em que nem toda a comida ou água nos saceia a fome e a sede, nem todo o vento nos saceia a vontade de voar, e que por mais que corramos ou tentemos dispersar, permanecemos sempre, sempre, ligados a nós. São os dias em que nos cansamos de nós e no pensamento rasgamos a roupa, permanecendo no frio nús, com a pele a gretar, só para sentir algo mais que um vazio e cansaço de algo que nem existe, de um movimento apático.


Fotografia de Nuno Ramos

7 comentários:

Luisa disse...

Então se puderes vai mesmo ver, o problema é q não está em muitos cinemas. :/
Mas, sem dúvida, que vale a pena.

Luisa disse...

Ah, e gostei tanto do texto. :|
Adoro o facto de estar escrito na 1a pessoa do plural... envolve-nos também a nós, que lemos.

Tiago Ramos disse...

Excelente. Perfeito.

Jacinta. disse...

Amei.

Leaven disse...

Não li, porque é grande, e não foi eu que escrevi. No entanto, gosto tanto. Porque não li. Caso tivesse lido era bem capaz de assentar a palavra "adorei. Minto. "Adoro" era mais apropriado pois não está enclausurado no passado. Um dia quando for gente vou ler e adorar, ainda mais. Por enquanto, sou preguiçoso egocêntrico. Escreves por mim.
Adoro isso.

Ana Luísa Pereira disse...

Mais curioso ainda são estas palavras que são tão tuas.

Gonçalo Rato disse...

É como me sinto hoje, exactamente como a personagem do texto. É tão bom saber que não somos os únicos.