29/07/2008

Diários do Desespero - O escritor que parou de escrever

Dia 47
Rodo o calendário, mais um dia nesta vastidão de milénios pelos quais milhares de seres pisaram este pedaço de terra onde me encontro actualmente, mais um dia na monotonia de uma rotina que me trespassa como uma espada e me esventra toda a vontade de me fazer à estrada, de polegar ao ar, palmilhando o património. Mais um dia sem escrever.
Os meus dedos estremecem, na minha mente uma névoa disfarçada com a sua cor de pérola afasta a clareza de espírito e da concentração, a boca está seca, ressequida, as lágrimas caiem-me dos olhos para as mãos, as mesmas mãos que me acolhem o sal e param-me a tinta. Se ao menos fosse a mente que escrevesse e não estes flácidos dedos… Quero comê-los a todos! Arrancá-los à dentada e dá-los de comer à terra! Ingratos filhos da puta, dou-lhes o prazer do nylon, das trastes, das teclas, de sentir o vento e os grãos de café, e os cabrões sabotam-me as ideias! Mas não, nunca mais, as feridas vão ser minhas amigas, e os convencionalismos não existirão mais, e então eu poderei ser livre! Livrar-me-ei deste paradoxo que é escrever sobre não conseguir escrever, desta dor que é não ter dor que extravasssar, não ter nada de verdadeiro! Livrar-me-ei do ridículo! Então conseguirei mais uma injecção e viajar, viajar…
Quando é que é que esta seca vai acabar? Dêem-me água, por favor, as lágrimas já não me matam a sede. Quando é que esta fome vai acabar?


Maio, 17, 1943



Fotografia de Cyril Berthault Jacquier

Um comentário:

Patrícia Lino disse...

É o meu material predilecto :)
Mas experimento muitas outras coisas. Coisas que não mostro. Adoro pastel de óleo. E aguarelas!