23/09/2007

Histórias da fachada gasta

Eles chegam aos pacotes, como animais enjaulados, encarcerados por si próprios em latas, todos seguindo em cardume, prontos para o ritual, como desenhos animados. Também eu embarco na massização que me despeja na suja calçada onde tantos outros marcham, pequenos soldados vendados, ignorando os vigiantes prédios que à sua volta se erguem mal-tratados, numa peculiar beleza que atrai o meu olhar. Mas eles não param, eles não param. O alvo está marcado e o dedo a milímetros do botão, robóticamente nos guiamos como satélites teleguiados. Ouço fragmentos de vidas gritarem pelos becos e estreitas ruas, vozes velhas presas na imperceptibilidade dos ouvidos moucos. Ninguém repara. Os olhos estão fixados, chegaram ao cerne da sua cegueira, de motores ronronantes.



Na sombra de um prédio um mendigo prepara cuidadosamente a sua cama de trapos contorcidos, irónicamente estendidos em frente à montra do consumismo dourado que enfeita os mais presunçosos pescoços. Os abutres emergem de seus ninhos e continuam na sua busca sedenta de carne fresca, demasiado ocupados e zonzos com o seu festim espumoso e fresco para reparar nas rugas da repousante cabeça, que contrasta com o tecido castanho da dura almofada. Alguns reparam mas é má carne. Fulminam-o com as suas órbitras perpetuantes e retomam o trilho, apanham de novo o cheiro dos musculos e tendões a serem rasgados no crepúsculo veranal, ouvem o esguicho do sangue quente caindo a kilómetros, os filhos-da-mãe.


As cordas viajam pelo esquecimento encerado, por ora peludo, que enfeita os esquecidos pendricalhos pendurados no gracejante crânio. Ele vai pela negra coluna viajada e suja, cansada e velha, em que raras são as vezes que vê o metal a cair na tigela para à noite ser engolido pelo dono apaixonado. Quando atrai relanceados olhares o mundo é dela, e ganha novo ânimo para traduzir a alma do homem que toca o morno violino a seu lado em palavras perceptíveis aos pobres estrangeiros da melodia. Coitados, queriam eles ser filhos das claves e irmãos dos contra-tempos, queriam eles serem os melhores amigos do Dó, os namorados da Mi, e os enamorados do Si que gosta de viajar entre as duas equipas. Queriam eles ter altifalantes nos dedos, queriam eles tocar a pele pela fala muda na boca mas gritante na derme, queriam eles falar como quem beija, tocar como quem penetra as barreiras do prazer. Mas a pequenita coluna só toca bem para alguns, e leva a todos. Pena que a inveja toque a todos e só (não)leve a alguns.

Para quê as palas? Para quê?


Fotografias por Cyril Berthault Jacquier

5 comentários:

abreu disse...

Este teu texto fez-me lembrar as ruas de Lisboa. São assim mesmo esses mendigos que retratas.

Aacabamos por todos por ser vitimas da inveja, de uma forma ou de outra.

Btw, escreves espantosamente bem! :O Essas descrições extremamente metafóricas, ui, é dom, só pode.

abreu disse...

Aliás, *Acabamos todos (...)

Zuzuuu ^^

A Menina e a Sombra disse...

E leio, volto a ler, releio, e fico de olhos colados ao ecrã. Irremediavelmente, estas tuas palavras segregaram-me a atenção.

Que posso dizer mais?

abreu disse...

Ide ao meu blog. Foste contemplada com um premiozito. =)

Tiago Ramos disse...

Agradeço muito o facto de teres linkado o meu blogue neste teu espaço. Ainda não tive tempo de o ler, mas fica aqui a promessa que um dia o farei.

Abraço.